Esta não é certamente a crónica que gostaria de escrever sobre a minha participação no PBP. Mas isto é a vida em curso, nem sempre corre como planeamos ou como desejaríamos.

António Bento
Randonneurs Portugal Nº 20100008
Paris Brest Paris 2023

Decidi terminar a minha participação no posto de controlo de Fougères, com 928km pedalados.

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O motivo foi a incapacidade total de manusear com segurança e dentro dos padrões aceitáveis, o guiador, os travões e as mudanças, devido a dormência nas mãos e nos dedos e a hematomas nas mãos.

Tentei colocar a segurança, a minha e a dos outros Randonneurs em primeiro lugar. Essa foi a primeira preocupação e o meu racional. Se há algo de que me quero orgulhar é desse momento de lucidez, onde a tomada de decisão por vezes é difícil e o impulso pode ser, continuar e logo se vê.

Foi uma decisão ponderada, fácil de tomar, mas que me custou muito, no contexto (muito agressivo e emocional) de já ter feito 75% do percurso e de estar bem de pernas e de resistência.

Contudo, não trocaria momento algum de todo este caminho até encerrar a minha participação no PBP2023. É um acumulado de vivência, de experiência, de aprendizagens que certamente me tornará um melhor randonneur e talvez, espero, uma melhor pessoa.

Estive lá, tive o privilégio de participar, fiz um caminho difícil para estar na linha de partida. E valorizo toda essa jornada. Foi uma felicidade tê-lo conseguido.

O que, passado o momento da tristeza, da frustração, da impotência, até da raiva, me torna provavelmente mais conhecedor de limites, dos alertas, das estratégias e me deixará, acredito, mais forte, para voltar em 2027.

Vamos então à crónica, uma viagem ao “meu” PBP2023.

Como surgiu o Paris Best Paris na minha vida?

Comecei a pedalar em 2013 nos passeios entre Carcavelos e Cascais 😊, a fazer saídas de 20km. A coisa evoluiu e entre 2014 e 2015 fiz alguns brevets de 200km, uma aventura sozinho para o sotavento Algarvio com 320 km e um brevet de 300km.

A ideia de um dia estar no PBP nasceu por aí.

Todavia por questões da vida pessoal e profissional não pratiquei entre 2015 e 2020.

Regressei ao pedal com a pandemia em 2020. E rapidamente voltou a vontade de estar no PBP. Em 2021 pedalei até Santiago de Compostela em 4 dias e, definitivamente, comecei a querer e a formar a ideia com mais seriedade.

O caminho

Não foi fácil o caminho. Exigiu uma dose grande de conciliação entre família, trabalho e treinos, sobretudo no último ano e meio. Em 2022 consegui fazer uma série até ao brevet de 400k, não tendo sido possível realizar o de 600km devido a ter contraído Covid. Mas estava pronto para a pré-inscrição.

O caminho oficial começou com o brevet do Évora 200, em novembro de 2022. Depois, já em 2023, no brevet de 300km na zona oeste tive que abandonar devido a problemas mecânicos. Para gerir risco havia decidido fazer os brevet de 400 e 600km em Benacazon/Sevilha, com os Randonneurs Andalucia. E assim foi, tendo depois fechado o brevet de 300km no Baixo Minho. Estava feita a série, estava conseguida a presença no PBP2023.

A preparação

Realizei 11.735km no ano do PBP, entre final de agosto de 2022 e o momento em que terminei a minha participação no PBP.

Como pedalo a um ritmo lento, considero que é importante ter esta base. Deu-me confiança e o que viria a suceder no PBP não se deveu a falta de pernas ou de resistência, estava lá toda uma boa base.

Tive um contratempo, no último mês antes do PBP e a seguir ao brevet do Portugal na vertical 600km que fiz como treino e a que juntei mais 200km. Tive que tratar um tendinite no tendão rotuliano, o que me consumiu algum tempo extra e me deu algumas dores de cabeça. Mas ultrapassou-se, e o joelho, com a fisioterapia, portou-se lindamente.

O PBP 2023

Gostei muito de participar no PBP. Tem uma boa atmosfera, muita diversidade e multiculturalismo, uma grande mistura de estilos, culturas, motivações. Traduz a verdadeira essência do bom espírito do ser humano e de (alguma) comunhão.

Nos 3 dias entre 6f e domingo foi possível conviver com os randonneurs Portugal, com os randonneurs Andalucia e trocar vários cumprimentos e conversas com randonneurs de muitas nacionalidades, o que se viria a repetir no evento. Relembro conversas com randonneurs de Espanha, França, Estados Unidos, Austrália, Irlanda, Filipinas, India, Escócia, Inglaterra, Brasil, Alemanha, Itália, entre vários outros.

Inclusive fizemos uma prazeirenta volta de reconhecimento de 20km entre alguns randonneurs Portugueses, no sábado, bastante agradável e que deu para mexer um pouco.

Foto: Jorge Nabais

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Curiosamente não começou bem o meu PBP. Devido a alguma mistura alimentar prévia e ao calor dessa tarde de espera, e talvez a alguma adrenalina aumentada, iniciei com uma forte dor de cabeça que me condicionou os primeiros 80km. Não consegui pedalar relaxado. Decidi tomar um brufen e aí comecei a melhorar e a pedalar a um ritmo mais elevado. Durante a primeira noite já eram visíveis as Pessoas nas vilas e aldeias a apoiar quem passava, o que dava sempre um alento enorme.

Por volta dos 203k em Villaines-La-Juhel estava no ritmo, tudo a correr bem, consegui tomar um pequeno almoço fantástico que me deu enorme motivação. Corria tudo bem.  Já se sentia o apoio das pessoas nas localidades, na beira da estrada, a incentivar. “Bonne route e “Bonne Courage” eram palavras que se ouviam frequentemente, bem como crianças a pedir um “high five”. Excelente atmosfera. Neste posto de controlo já havia que dormisse com a cabeça em cima das mesas – sábios, direi eu agora à posteriori.

Até Fougères, aos 293 km, foi a rolar no troço que mais prazer me deu realizar. O dia estava lindo, brilhante e as pernas e a cabeça em perfeitas condições. Passeávamos pelos campos de França, com pequenas aldeias e vilas muito bem arranjadas, vários motivos nas varandas e nas estradas alusivos ao PBP e as Pessoas sempre a apoiar. Em particular as crianças que tinham sempre sorrisos maravilhosos e aquele ar saudável de quem vive no campo, respira bom ar e tem os níveis de stress muito longe do das grandes cidades.

Ainda dentro do ritmo fiz-me à estrada após o posto de controlo.

1º erro, subvalorizei o calor, ou pelo menos, não geri bem o estar tão quente numa fase tão cedo na rota. Com o passar do dia, o calor aumentava e comecei a ter alguns problemas. A tarde foi desastrosa. Sofri com o calor que me viria a condicionar bastante a circulação nos membros superiores com dano lá mais para a frente. Foi um troço penoso, com muitas pequenas paragens, até Tinténiac, ao km 354. E devia ter aproveitado para dormir mais tempo aqui e descansar mais. Tirei uma sesta pequena e segui.

Em Loudéac, ao km 435, já estava a derrapar face ao meu plano. 2º erro, devia ter mais uma vez dormido e descansado mais. Estava obcecado com os tempos limite nos postos de controlo. Esse é um ponto chave e que deixo como sugestão: ouvir melhor o corpo, se tivermos que falhar tempos limite intermédios, paciência, fazem-se as contas mais tarde.

Os voluntários foram sempre excelentes, em todos os postos de controlo. E carimbar era rápido, comer era rápido, nunca gastei muito tempo em vão.

Seguiu-se a 2ª noite e a motivação extra de estar menos calor e de querer chegar a Brest. Adorei o trajeto até Brest, correu bem, boas subidas, enormes descidas, passa por mim o Duarte, do grupo das 84h, trocamos 2 palavras ele seguiu no seu passo forte, eu no meu mais ligeiro.

Cheguei a Brest com 39h23m. Tinha 3h a mais do que o meu plano mas não era nada de catastrófico.

Dormi 45m que nem um anjo, um sono muito retemperador. Mas foi o meu 3º erro, mais uma vez devia ter dormido mais, iludi-me de que tinha que seguir por causa dos tempos limite intermédios e não dei o descanso devido ao corpo. Os problemas com o calor e com as mãos também tiveram como causa não parar o tempo suficiente até aqui.

Vi o Hugo, que estava com problemas no joelho e ia seguir num passo para terminar, já aquém do seu objetivo inicial. Soube bem falar com um companheiro. O Hugo tem um ótimo espírito, revejo-me 😊.

Passamos a icónica ponte de Brest e nem tirei fotos, ia preocupado com os tempos e isso significa, numa aventura destas, que já não estava a desfrutar como é suposto.

Os troços de noite com subidas e sobretudo descidas acentuadas estavam a ser muito penalizadores para as mãos. Começava a sentir a dormência e as dores. Esta era a parte mais complicada, entre Loudéac, Carhaix-Plouguer, Brest, novamente Carhaix-Plouguer, Loudéac e Tinteniac, porque no último quarto do percurso o trajeto já seria mais suave. Começava a perder o controlo face ao meu plano e começava a recear as descidas.

Apanhei um susto valente numa das descidas, de madrugada, que me fez recordar os 2 acidentes a que tinha assistido de muito perto, um randonneur que de manhã cedo adormeceu e seguiu contra um rail, tendo sido projetado para a valeta e ficado maltratado e uma randoneuse que à minha frente ia esbarrando contra um carro, não ficou espetada no carro por segundos ou por centímetros.

Em Loudéac, pela madrugada, ao km 782 cruzo-me com o Júlio que estava de saída do posto. Mais uma vez soube bem falar e partilhar um minuto de conversa.

Eu já tinha dormido mais 1h15m nesse posto de controlo, mas devia ter esticado mais uma vez o sono para ajudar a descansar o corpo e em particular as mãos.

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Arranquei e a partir daqui a maior preocupação era a segurança. Já ia muito maltratado e o trajeto entre Tinténiac e Fougères foi muito penoso. Inclusive tive que pedir para me abrirem uma coca-cola num dos cafés onde parei. Comecei a ter muitas dúvidas sobre as condições em que estava a pedalar, o calor continuava abrasador (a temperatura máxima que o garmin me devolveu foi de 39 graus, algo parecido com a serra do caldeirão na ida em treino para o Algarve, umas semanas antes).

Doíam-me as mãos e os pulsos, não sentia nenhum dos dedos, tive que tirar as luvas, este troço foi feito muito devagar e com paragens sucessivas.

Quando cheguei a Fougères, ao km 928, carimbei no posto de controlo e avaliei a situação. Vinha aí a noite. Tinha tempo para descansar o corpo e a cabeça, e com um pouco de organização poderia conseguir. Estava com pernas e sabia que a resistência não me faltaria. Mas as experiências anteriores de 600k e mais uns pós diziam-me que a dormência estava lá e lá ia ficar. E que as dores nas mãos também não desapareceriam. Nestes momentos, em que ainda consegui pensar, veio ao pensamento o risco, o balanço entre adorar este tipo de aventuras e as prioridades na vida real, a família, o estar bem, o acautelar a saúde numa situação extrema.

Antes de retirar a placa, ainda fui ao posto médico verificar as mãos e perceber se tinha alguma lesão que já fosse grave. A opinião médica foi de que estavam em mau estado, deixando-me, claro, a decisão a mim.

Aqui é hora de agradecer à Alice, uma voluntária luso descendente, tipo chefe de operações lá no posto, que me compreendeu, ajudou, animou e a quem devo esse carinho e apoio, bem como à Equipa médica.

Ao voluntário que me tirou a placa – dado que nem isso conseguia fazer, nem sequer abrir os fechos das bolsas onde tinha equipamento, identificação, ferramentas, etc., e com quem falei em Inglês, o meu Obrigado por ter respeitado os minutos em que, no meu canto, mandei tudo para fora, a tristeza, a frustração, a impotência, o defraudar de uma expectativa e de 2 anos de trabalho.

A vida é mesmo assim. A coragem mede-se pela concretização das tarefas em situações extremas, ou, quem sabe, no pólo inverso, pela capacidade de decidir ao contrário do que desejamos, a bem de algo futuro e da continuidade de algo que gosto de fazer. E mede-se pela capacidade de regressar depois do tombo – esta fica por conta das ações futuras.

Cá estou. Ainda a digerir tudo, mas já a pensar em futuras aventuras e a organizar as aprendizagens desta.

Fiquei 3 horas nestes bancos, com a minha bicicleta, em Fougères, à espera da boleia. Não é o corolário ideal ou sequer esperado. Mas como lição, fica a necessidade de também ter um plano de evacuação, no caso de as coisas não correrem como queremos.

Finalizo com um resumo do que mais gostei, do que menos gostei, o que considero mais importantes em termos de aprendizagem – e se conseguir ajudar alguém com estas reflexões, fantástico.

Pontos Mais (+)

  • Ambiente e atmosfera fantásticos, diversidade, multiculturalidade, uma experiência, sem dúvida, a repetir.
  • Randonneurs Portugal.
  • Voluntários e populações num apoio sem igual.

Pontos Menos (-)

  • Os riscos e perigos de andar na estrada com tanta gente. Vi vários acidentes e incidentes, e o custo e dano podem ser elevados.
  • O espírito randonneur e a entreajuda – não vi assim tanto. Talvez em grupos já pré-formados. Parei 5 vezes, para ajudar um Indiano (metia dó, de noite numa valeta a implorar por uma bomba de encher pneu), uma Indiana, um Irlandês, um Filipino, um Espanhol. Não tenho a certeza se outros parariam por mim, pois também vi muita gente passar ao lado e nem perguntar a quem estava aflito se necessitava de ajuda.
  • Os grupos de “semiprofissionais ou de profissionais” que seguem em pelotão, que se estão a marimbar para os mais lentos e que passam por nós a fazer razias, para completar as suas 40 ou 50 horas, como se fossem melhores pessoas por esse facto.

O que trago de aprendizagem / reflexões para próximas aventuras – válido para quem pedala devagar como eu

  • Cuidar de manter refeições conforme habitualmente, durante a viagem e nos dias antes. Não ceder aqui.
  • Passar menos tempo em Rambouillet/local da partida nos dias antes – é giro mas consome energia. É levantar a placa, o cartão, o equipamento e seguir para descanso.
  • Reservar hotéis com 1 ano de antecedência.
  • Sair mais cedo – a saída pelas 20h30 foi um erro. É um dia perdido e quanto mais cedo se estiver na estrada melhor. E para isso há que fazer a série toda para a pré-inscrição, incluindo, se possível, um brevet de 1000km.
  • Autonomia na energia – dínamo ou alimentação a energia solar e não powerbanks.
  • Dormir períodos de no mínimo 3h durante o PBP.
  • Não dar assim tanta importância aos tempos dos postos de controlo intermédios. É gerir posto a posto, mas dar prioridade ao corpo, ao descanso e aos “periféricos” – mãos, pés, tronco, etc.
  • Estar pronto a alterar os planos e a ter flexibilidade, sobretudo com condições atmosféricas adversas – o calor pedia medidas diferentes.
  • Nos 2 anos antes do PBP pedalar em média 10 a 11.000 km por ano, variando percursos e metendo bom acumulado.
  • Perder peso neste corpinho – estar próximo do peso ideal para a idade, ajuda, para a próxima conto tirar 5 a 6 quilos, requer vontade, mas cá estaremos. É que transportar menos 6 quilos durante 1.200km, fará muita diferença.
  • Retirar peso na bicicleta. O quadro é espetacular, já temos uma ligação umbilical. Mas poderá ter umas rodas 700 com pneu mais fino e posso carregar menos peso nas bolsas.
  • Realizar pelo menos 3 séries completas antes de fazer o PBP e em 2 deles fazer brevets de 1000km – acho fundamental este ponto, pois para quem pedala devagar e passa muito mais tempo em cima da bicicleta do que quem pedala depressa, tem que conhecer ao que vai. E fazer 600km ou 800km é totalmente distinto e fica aquém em termos de experiência, como pude verificar por experiência própria.
  • Finalmente, não dar demasiada importância caso as coisas não corram tão bem. Como já escrevi, há mais marés que marinheiros, e tudo são aprendizagens, passos, numa jornada que terá outros eventos, outros PBP certamente e há que relativizar. Afinal a vida não é só o PBP. O PBP é algo importante, mas é uma parte de algo maior.

Agradecimentos

  • À minha família – sem vocês, sem o vosso apoio, sem o vosso carinho, isto não faria sentido nenhum. E obrigado pela paciência. Felizmente pudemos divertir-nos depois, conforme planeado, no maravilhoso mundo da Disney.
  • Aos randonneurs Portugal e aos companheiros dos vários brevet ao longo dos anos e do PBP23 – foi um gosto privar convosco e fazer parte da aventura. Obrigado por toda a partilha e ensinamentos.
  • Aos randonneurs Andalucia – foi um gosto privar convosco, nos brevet de qualificação e no PBP23, e sentir que a amizade cresce. Voltaremos a cruzar-nos.
  • Ao Samuel e à BeCyclist-Store, já um Amigo, mais do que um parceiro.
  • Ao Nuno, por ter estado sempre presente, desde há muito e desde o recomeço em 2020 e pela partilha, não apenas das pedaladas, mas do círculo da vida.
  • Aos meus Amigos que me apoiaram, incentivaram e tiraram algum tempo para mim.
  • Aos voluntários e às populações que vieram para a estrada incentivar e ajudar. A comida, a bebida, mas sobretudo, o laço Humano, fazem deste um evento diferente.
  • À Alice – já está no meu coração, por todo o apoio e carinho. E Fougères também – que aliás, aproveitei para visitar com a família a reboque da boleia que me deram no dia seguinte ao abandono.

E como consideração final …

Conto voltar em 2027. E já tenho um plano a 4 anos. Sobretudo com aventuras que me coloquem a pedalar distâncias similares.

Desilusões acontecem. Incidentes/acidentes, também, frustrações expectativas defraudadas.

Mas o que interessa mesmo é o que aprendemos com cada situação, o que fazemos com as experiências que vamos acumulando e, acima de tudo, manter o sorriso e a vontade de explorar mais.

Obrigado PBP2023, pela jornada que me permitiu fazer e pela possibilidade de vivenciar algo único. E até um destes dias PBP2027.