Seiscentos quilómetros são muitos metros...

José Ferreira
Randonneurs Portugal Nº201300045
SR 600 km LUAI La Grediana @ 2016

Super quê?

Uma Super Randonnée (SR) é uma randonnée permanente, localizada em zonas montanhosas, num percurso com cerca de 600km e um desnível positivo superior a 10 000m, o qual deverá ser efetuado em completa autonomia, em menos de 50 horas. Para além do desafio que encerra em si mesma, constitui um dos elementos necessários à obtenção da distinção Randonneur 10 000.

Completado o Paris-Brest-Paris e com ele atingida a distinção Randonneur 5000, seguiu-se o desejo de ir mais além. Efetuar uma SR evidenciou-se como objetivo a superar, tendo decidido que iria tentá-lo sozinho.

A SR LUAI La Grediana é organizada pela La Unión de Audax Ibéricos e, saindo dos arredores de Madrid, percorre as serranias de Gredos. Apresenta 17 postos de controlo, para além da saída e chegada, cuja passagem deverá ser comprovada através de fotografia da bicicleta em locais determinados.

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Prólogo…

Após amadurecimento da ideia iniciei o longo caminho de preparação, recolhendo informação, delineando uma estratégia e escolhendo a data. Sabia, da leitura de crónicas de outros participantes, que um dos grandes problemas, para além da altimetria, seria o calor estival. Numa primeira abordagem pensei em oferecer-me este passeio pelo meu aniversário, ainda no final de outubro de 2015, mas o organizador desaconselhou completamente a data, face às grandes variações meteorológicas decorrentes das altitudes atingidas.

A data escolhida recaiu assim sobre a ponte do 10 de junho de 2016, para reduzir o consumo de dias de férias. O caminho, e a espera, foram longos mas bem ocupados. Escolher a hora de saída, onde dormir, o que levar… Pareceu-me evidente a necessidade de reduzir o peso, donde a opção pela bicicleta de carbono, com carga tão aligeirada quanto possível. Os passeios foram sendo orientados para percursos com maior altimetria (60km/1000m; 90km/1500m, até atingir um quarto da distância, 150km/3000m) e os alojamentos foram reservados com grande antecedência.

Seiscentos quilómetros são muitos metros. Há que pensar em objetivos mais curtos. Um dos meus grandes medos era o de deixar passar um posto de controlo (constituídos sobretudo por placas de sinalização, defronte das quais era necessário fotografar a bicicleta com a placa de quadro visível). Assim, organizei folhas individuais para cada troço, com o traçado, altimetria, imagem do local, distância e hora prevista de chegada. O percurso far-se-ia assim troço a troço, reiniciando a contagem após cada controlo.

Primeira parte

quinta-feira, 20H00 – sexta-feira, 21H00; 400km / 7000mD+

Finalmente o grande dia chegou. Quinta-feira de manhã, com a alvorada antecipada pelo nervosismo, pus-me a caminho de Boadilla del Monte, local de saída, acompanhado pela pendura responsável pelo resgate caso as coisas corressem mal.

À hora escolhida (20H00), o organizador compareceu no local de saída, providenciando informações adicionais e disponibilizando-se para atender qualquer dúvida que, a qualquer hora do dia ou da noite, me atormentasse.

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De carro, guiou-me nos quilómetros iniciais até Brunete, passando rapidamente o labirinto dos subúrbios madrilenos.

Largado sozinho, os quilómetros foram-se sucedendo há medida que o sol se punha. A rotina foi-se sistematizando: descoberto o local do posto de controlo, posicionamento da bicicleta; foto comprovativa; registo da hora no cartão de percurso; SMS para o organizador; mudança da folha e estudo do percurso; nova etapa…

Navalagamella, Aldea del Fesno (e primeiro stress). Meti na cabeça que o posto de controlo, um hotel, ficava do lado direito, e lá segui, inspecionando as fachadas. Quase passada a povoação, voltei para trás, desta vez olhando para a esquerda, e do hotel nada. Parei junto a uma esplanada e questionei os clientes, os quais me apontaram o edifício mesmo ao lado, na margem oposta àquela onde eu procurava. Rotina cumprida e aproveitei para jantar, um bocadillo com lombo, do qual só comi metade (o resto foi parar à mala) e um arroz doce. Resolvi que o café seria tomado mais à frente.

Esse mais à frente, já não estava aberto. Novo posto de controlo junto à placa para Sotillo de la Adrada. Finalmente, em Higuera de las Dueñas, o almejado bar aberto (à 1H20) mas já com a máquina de café desligada. Os clientes olhavam-me de forma estranha, certamente equacionando se não teriam já bebido de mais (que outra explicação poderiam encontrar para a visão de um ente verde, com a jersey dos Randonneurs Portugal, armado em árvore de natal, àquela hora da noite). Com a escuridão, a paisagem reduzia-se a uma pequena faixa iluminada na minha frente e aos sons provenientes das propriedades adivinhadas junto à estrada. Volta e meia um ladrar grosso fazia imaginar um cão de grande porte que, a qualquer momento, me poderia abocanhar a roda. Felizmente as vedações eram eficientes e eles mantiveram-se de guarda aos seus domínios.

Primeira subida e foto no Puerto de El Pielago. Descida a medo, alertado para os perigos pelo organizador, mas que se revelou pacífica.

As duas lâmpadas frontais inundavam de luz o caminho estreito, o piso era bom e nenhuma besta saltou do negrume da floresta para a minha frente. Já em baixo, na estrada larga, um javali deixou-se iluminar fugidiamente e, mais à frente, uma raposita parou encandeada, indecisa sobre o rumo a tomar.

Passagem por Talavera de la Reina pelas 4H10. Povoação avantajada onde ”certamente encontraria algo aberto”. Certamente haveria mas não no meu caminho. Começava assim a parte mais penosa da jornada. A vontade de tomar um café, o sono e o frio foram-me enlaçando. Junto a uma bomba de gasolina, uma máquina de distribuição de bebidas: e eu sem moedas… Comi mais um quarto da sandes do jantar e segui, começando a vestir agasalhos e cantando para despertar (não devo cantar assim tão mal, uma vez que não surtiu grande efeito).

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Com o alvorecer apareceu uma estação de serviço que dava sinais de querer abrir, mas também sem café. Em alternativa o funcionário anunciou-me a existência de um bar aberto, poucos metros à frente, em Ramacastañas. Por fim o tão almejado café com leite, acompanhado por um bolo, e que constituiu o primeiro pequeno-almoço.

Começava aqui a abordagem ao primeiro colosso, Puerto del Pico.

O negrume que se divisava sobre a cumeada e uns esparsos pingos na cara deixavam antever um tempo duvidoso, bem distante da auspiciosa previsão meteorológica.

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Para além de ter de enfrentar a inclinação da estrada, um vento desmesurado teimava em descer o vale com rajadas que faziam abanar a bicicleta.

Com a entrada no Parque da Serra de Gredos a paisagem começava a despertar a “veia” fotógrafa, servindo de pretexto para breves momentos de descanso.

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Passada a portela, o vento quase desapareceu, o sol inundou o vale e a noite terminava assim, oficialmente.

Viragem à esquerda para o posto de controlo seguinte. No caminho avistei o primeiro esquilo do dia. Regresso pela mesma estrada e paragem para o segundo pequeno-almoço.

O dia começava a aquecer e as cobras e lagartos esmagados no alcatrão começaram a ser uma constante.

A passagem das linhas de água ia marcando a transição para a subida seguinte e permitia apreciar o traçado das vias antigas, agora substituídas pela negra serpente em betuminoso.

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Já no início da abordagem a Serranillos aparece a primeira rampa a sério, felizmente apenas uma centena de metros para aceder a Navarrevisca.

Depois as pendentes acalmaram novamente permitindo descansar na subida.

Na placa de entrada de Serranillos novo posto de controlo e, logo à frente uma fonte. Uma das muitas que me foi abastecendo de água fresca ao longo do dia. Tempo de comer o resto do jantar e enfrentar as subidas seguintes: Puerto de Serranillos, curta descida e Puerto de Pedro Bernardo.

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Comecei a encontrar os primeiros ciclistas que vinham treinar para a montanha (felizmente sempre em sentido contrário pelo que não passei vergonhas).

Com isto começavam a ser horas de almoço. Equacionei uma paragem mais demorada na povoação e uma refeição a sério, mas um erro no track levou-me por um atalho direto à saída, deixando para trás qualquer hipótese de abastecimento. Chegado à estrada principal, o bar da estação de serviço permitiu remediar a situação: almoço restringido a um bocadillo com presunto e tomate… e continue-se o passeio.

O posto de controlo seguinte, nas placas que anunciam o desvio para Casavieja e Mijares. Início da subida mais longa de todo o percurso (cerca de 25km, subindo 1130m).

Inicialmente preocupado porque as reservas de água já eram escassas, acabei por encontrar algumas fontes já nas alturas de Mijares, e também as pendentes mais acentuadas da subida. Passada a povoação, tudo ficou mais calmo, menor pendente, menos trânsito, menos calor, apenas a subida que continuava e continuava, com paisagens cada vez mais apelativas.

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Na passagem por Burgohondo, pequena pausa junto ao jardim para repor os líquidos.Passado o topo, nova descida, recuperando agora o tempo despendido a repousar na ascensão.

…e o dia lá foi terminando, à medida que se completava o percurso planeado para a primeira etapa (passagem ainda dos puertos de Navalmoral e La Paramera), chegando cerca das 21H00 ao local previsto para a pernoita, no Hostal “El Chato” em O Barraco.

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Interlúdio

sexta, 21H00 – sábado, 5H30

Uma hora mais cedo significou mais uma hora de descanso e uma maior confiança no cumprimento do plano previamente delineado.

Quem viu as fotos da chegada comentou que eu aparentava um ar cansado, quase zombie. Eu sentia-me bem: com a normalíssima aparência de quem acabou de fazer uma direta.

A receção no hostal e restaurante foi extremamente acolhedora, não fosse o dono também um ciclista aficionado. Banho, jantar, dormida.

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Segunda parte

sábado, 5H30 –  19H00; 200km / 3000mD+

Saída às 5H30, ainda de noite, descendo até à cota do Embalse del Burguillo, apenas adivinhado na escuridão, desperdiçando o resto dos metros penosamente angariados na última subida da véspera.

Com o fulgor da madrugada aparecia também a primeira povoação. El Tiemblo estava em fiesta. Sorte para mim pois um bar aberto permitiu-me reforçar o pequeno-almoço. Ambiente estranho onde o álcool continuava a correr e o meu trajar destoava completamente. O empregado pergunta-me para onde vou àquela hora e não tive resposta para lhe dar. Responder Madrid, sendo verdade, não definia o meu caminho. Acabei por responder que estava a seguir um track de GPS.

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Caminho retomado, com o estômago mais quentinho, rapidamente cheguei ao próximo posto de controlo, e segue…

Três quilómetros à frente, quando meditava na minha sorte por não furar, o imprevisto aconteceu: o pneu da frente começou a ficar espalmado debaixo do meu peso, sinal certo de furo.

Aborrecido, mas o que não tem remédio…

Desmonta a roda, retira o pneu, procurando o responsável pelo incidente, e tentativa vã de remoção do espinho encontrado, demasiado fino e que não se deixava agarrar com as unhas recentemente cortadas. Pequena raspagem com a lâmina do canivete e, esperando que a coisa resultasse, toca a montar tudo de novo. Palamenta arrumada e ala que se faz tarde.

Quando pego na bicicleta para retomar o caminho, verifico que a roda de trás padece do mesmo problema. Eu que, em todos os meus quilómetros de estrada, apenas tinha furado cinco vezes, de repente furo as duas rodas ao mesmo tempo!

Só tinha levado duas câmaras-de-ar. Para além do tempo perdido com as substituições, boa parte da confiança tinha-se esvaído juntamente com o ar dos pneus. A crónica de viagem poderia vir a ter um desenlace bem diferente do augurado.

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A medo retomei o caminho, ansioso por encontrar um local onde pudesse comprar novas câmaras-de-ar ou um depósito com água que me permitisse proceder a uma reparação certificada das usadas. Esta última hipótese foi a única viável na povoação seguinte, Cebreros. Mais confiante, mas com menos tempo de folga lá continuei em perseguição do cume que se avizinhava.

Já no alto, a paisagem devolvia-me o alento.

Nova descida, nova subida e, sendo domingo, é dia de treino. Recomeço a encontrar ciclistas que procuram os mesmos terrenos por mim percorridos.

No posto de controlo seguinte faço um desvio até ao centro de Tornadizos, em busca de uma fonte que me permitisse fazer o pleno das reservas de água para enfrentar o calor da tarde que se anunciava. Pausa aproveitada para comer o resto de pão do almoço do dia anterior.

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Hora e meia mais tarde, na passagem por Las Navas del Marqués, um súbito impulso (ao qual o calor que se fazia sentir não era certamente alheio) levou-me a parar numa esplanada à sombra. Procurei uma bebida fresca mas uns montaditos com muito bom aspeto trouxeram outras ânsias.

Eureka! Havia caldo, e cerveja preta, e arroz doce…

Vinte minutos depois retomei a rota, com novo ânimo uma vez que tinha já recuperado o tempo perdido e estava novamente à frente do plano. A subida seguinte foi penosa, o calor e a pendente uniam-se para dificultar o cumprimento da tarefa.

Subidas e descidas, mais do mesmo, cumprindo o percurso estipulado e fotografando as placas previamente definidas.

Pelo meio a água do Rio Cofio apelava a pausas mais prolongadas. Felizmente a ponte era alta pelo que foi menos difícil resistir à tentação.

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Madrid aproximava-se agora a passos largos.

Pouco depois deste posto de controlo, uma viragem à esquerda permitia a fuga ao trânsito, percorrendo uma estrada secundária (Crtª Valdemaqueda) através de um cénico bosque de pinheiros mansos. Último local de paz antes do regresso à “civilização”.

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Apesar de já não existirem mais puertos oficiais, os últimos quilómetros não se venderam baratos. Passado Robledo de Chavela, a estrada empinava-se outra vez e, juntamente com o calor que se fazia sentir, levava a que as pernas se movessem muito  vagarosamente, tentando uma mais vez descansar subida acima, desta vez sem grande resultado.

A meio novo reabastecimento numa fonte de “água não potável”, pesando o risco de um transtorno intestinal face à hipótese de desidratação. Pouco depois reapareceu o Jose Maria, anunciando-me o fim das dificuldades e a proximidade da meta.

Faltava mesmo só chegar. Os últimos quilómetros estranhamente pedalados em autovia.

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Epílogo

Concluído o relato, sempre alguém questiona: custa muito?

Agora, passados uns meses, tanto quanto me recorde, não mais do que outros percursos de maior extensão que tenha feito (certamente bastante menos do que o BRM-1000 que entretanto fiz).

Difícil, difícil… foi a preparação… e a espera.

Crónica que se preze, tem agradecimentos:

  • Aos que criam condições para estas coisas acontecerem. P. A., representante nacional do Audax Club Parisien, por ter trazido para Portugal os Brevets des Randonneurs Mondiaux (BRM) (e que, através do seu blog “A Dinâmica do Pedal”, me fez descobrir o ciclismo de longa distância); e Jose Maria C. organizador da SR La Grediana, pela organização, apoio prestado e confiança transmitida;
  • E aos que permitem que estas coisas aconteçam. Família e amigos, por não refilarem “muito” comigo pelo dispêndio de tempo e recursos, decorrentes destas minhas atividades.

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