Crónica da primeira Super Randonnée (SR) portuguesa

José Ferreira
Randonneurs Portugal Nº201300045
SR 600 km Portucale @ 2017

SR PORTUCALE

Primeira Super Randonnée (SR) portuguesa, congeminada pelo triunvirato André / Valter / Vitor. Na sequência do teste feito recentemente pelos dois primeiros e introduzidas as correções finais ao percurso, coube-me estrear o traçado definitivo.

Sendo esta a minha segunda experiência nesta tipologia randonneur, a alteração das regras entretanto ocorrida (passagem do tempo máximo das 50 para as 60H, sem diferenciação pelo acumulado) permitiu-me estabelecer um plano que consente a divisão do percurso em três etapas, com duas boas noites de descanso pelo meio.

Saída da cidade berço às 9H30, após um brinde com moscatel gentilmente trazido pelo Valter, partilhado pelo André e pela minha sensorte que, mais uma vez, arcou com as tarefas de me levar ao local de saída e posterior recolha no final da gesta (para além da angústia da espera).

Após a fotografia de controlo junto à muralha, os primeiros 20km levaram-me até à N205, estrada amena já conhecida do BRM-200, Gerês. Logo depois, ainda pela fresca, alcancei o Posto de Controlo (PC), em Cabeceiras de Basto. A data escolhida para o início do percurso, quinta-feira Corpo de Deus, fez coincidir o primeiro dia com as celebrações religiosas inerentes e com uma sobrelotação dos pontos de restauração.

Face à hora temporã e após duas tentativas goradas de comer uma sopa, retomei o caminho até Ribeira de Pena, aproveitando uma das notas dos organizadores. A ausência de sopa no cardápio restaurativo deixou-me como opção um melão com presunto, manjar randonneur também adequado à canícula que já se fazia sentir.

Gelo, nem vê-lo

Qual paradoxo do ovo e da galinha. Ribeira da Ponte, ou Ponte da Ribeira

O almoço foi complementado pelo pudim ingerido já em Vila Pouca de Aguiar antes da abordagem à subida até ao PC seguinte (Padrela). Esta subida percorre uma mancha florestal variada a qual felizmente tem sobrevivido aos fogos florestais.

Eólicas, sempre presentes

Depois da Padrela, rapidamente abandonei a estrada nacional, fazendo a descida por uma municipal com piso em bom estado mas que obriga a atenção contínua, face a algumas surpresas que se vão encontrando. A primeira foi logo em Tazém, marcando o mote para as que se lhe sucedem. O pavimento passa repentinamente de betuminoso a calçada, na entrada da povoação, podendo assustar os mais distraídos, sobretudo se levarem material mais frágil.

O fim destas descidas, acompanhado pela mudança do substrato rochoso de granito para xisto, deixou-me bem consciente de que os dias escolhidos para o passeio seriam tórridos. Até passar Murça e, após vencer as famosas curvas da N15, chegar ao Alto do Pópulo, fui destilando lentamente na que seria a menos quente das três jornadas.

Atingido Alijó, último sítio para abastecer antes de se cair para o Douro, segundo rezavam as notas dos designers, paragem no Café da Paz para um lanche salgado.

A estrada agora afundava-se em direção ao Tua, forçando velocidades incompatíveis com fotos em andamento, apesar das primeiras vistas sobre os socalcos vinhateiros o solicitarem. O PC-4 forçou a paragem, permitindo as merecidas fotos sobre os rios Tua e Douro, também sobre a velha ponte ferroviária e o troço da Linha do Tua que desaparece monte adentro pouco antes do paredão da nova barragem.

Fim da descida, nova subida, fugindo ao Douro. Quase no topo, em Castanheiro, um vizinho que regava o jardim ao fim da tarde, permitiu-me repor as reservas de água. Passado o alto, nova descida, agora para a Valeira, antes da ascensão final do dia, embora feita já de noite, que me conduziu ao primeiro ponto de descanso em S. João da Pesqueira. Ainda no alto vi a minha perna lambida pelo guarda da propriedade vizinha, mastim de respeito que felizmente se assustou quando peguei no bidão da água.

O local escolhido para o primeiro repouso (Hotel Pesqdouro) cumpriu o papel na perfeição. Sendo eu o único hóspede, a responsável aguardou a minha chegada, conduziu-me ao restaurante garantindo-me uma refeição retemperadora e, de manhã, levantou-se às 5H30 para preparar o pequeno-almoço. Mais não se pode pedir.

Saída pelas 6H00, com o nascer do sol, para a segunda etapa. Nova descida ao Douro, fruindo mais uma vez do património paisagístico do Alto Douro Vinhateiro, desta vez em cores matinais, para abordar a subida a Tabuaço, agora de costas para o rio.

…e os fãs, que não me largam

A ascensão foi continuando, com pendentes mais suaves. Novo posto de controlo, nova fotografia, em Moimenta da Beira, local aproveitado para reforçar o pequeno-almoço. Mais à frente mudança de estrada para a N323, acompanhado pelos afamados pomares de Moimenta, passando a placa indicativa da Fundação Aquilino Ribeiro, em Soutosa, e Vila Nova de Paiva. Poucos quilómetros depois há que abandonar esta estrada. Atenção que o desvio aparece repentino, depois de uma curva.

Em Lamas, um fontanário à direita convida a parar. De repente um apelo: “Ó senhor não beba essa água. Sabe a lixívia.” A hospitalidade dos pequenos lugares permitiu-me encher os reservatórios com água de nascente, bem mais saborosa. Após dois dedos de conversa continuei a viagem, cruzando a N2 para retomar o sobe e desce característico do percurso até chegar à aldeia de Sul.

 

Aqui começa a subida a S. Macário. São horas de almoço mas a tarefa que me espera não convida a grande repasto. Uma sanduíche ligeira cumpriu a função. Repostas as reservas de água, cerrei os dentes e fui-me a ela. Às 13H00 o termómetro marcava 35º. Depois foi ver os números a crescer, os da pendente e os da temperatura, chegando a passar os 40º. Com algumas paragens estratégicas para baixar a temperatura do motor, a placa acabou por se deixar conquistar, com quase duas horas de vantagem sobre o plano previamente elaborado.

Julgava eu que o pior tinha passado e que o percurso até ao próximo PC seria tarefa simples. Tal engano! Primeiro, a descida ainda não estava ganha. Faltavam alguns topos que cortavam a velocidade e obrigavam a recorrer às peças mais à esquerda da transmissão.

Depois, à semelhança do primeiro dia, desci ao inferno. A descida divertida, em lacetes, obrigando a muita atenção, levou-me a Ponte de Telhe. Daí, só subindo, no meio das encostas de xisto, sem sombras, escaldando, devagarinho…

Após abastecimento em Arouca, lá atingi a placa da Garganta do Paiva. Fotos da placa, do rio, da garganta e dos passadiços, protelando a partida. Continuando, lentamente, faltavam pouco mais de 4km para Alvarenga (terra afamada pelos bifes de vitela arouquesa), mas o fosso puxava-me para baixo. O tempo passava sem que os, poucos, quilómetros desfilassem. Uma paragem intermédia aproveitando uma sombra permitiu quebrar o feitiço dando-me forças para, dois quilómetros à frente, atingir o primeiro tasco disponível. Com estes movimentos de caracol se foram as duas horas de vantagem que trazia.

Alvarenga passou, sem paragem, pedalando para a próxima dificuldade: subida às Portas de Montemuro, pela Faifa. O fim da tarde, com temperaturas mais amenas, simplificou a tarefa. Chegada ao PC já de luzes acesas, acelerando na descida para a segunda noite de descanso em Cinfães. Ao jantar, o chorado bife, antes da dormida.

A noite foi passada na Pensão Varanda de Cinfães. Este local encerra cedo, incompatível com os horários da SR, tendo-me obrigado a uma visita na semana anterior para articular a logística. Entrei e saí sem ver vivalma, o desjejum previamente articulado com a dona da pensão. Noite quente com o sono difícil pelo que antecipei a saída para as 6H00.

Terceira etapa, última descida ao Douro, seguida da passagem para o vale do Tâmega. Em Amarante foi tempo de reforço alimentar antes de abordar a N15 até ao Alto de Espinho. Esta é uma subida longa mas muito agradável de se fazer. Estrada com pendentes contidas, boas paisagens e floresta que vai proporcionando sombra e fontes frescas para abastecimento.

Três gerações de estradas, um só destino

Fechado mais um PC, descida à Campeã, subida às eólicas pela N304 e descida… Mas que descida! Esta é uma descida a sério, desafogada, desimpedida de vistas… até ao Parque de Merendas do Rio Olo.

Há que desfrutar, até porque depois é necessário forçar a pernas de novo para atingir Mondim de Basto. A visão do Monte Farinha convidaria a mais uma ascensão, não fosse o percurso da SR ter já acumulado que enjoa. Nova paragem para reforço, preparação para a última dificuldade do trajeto.

Subida(s) ao Viso. Penúltimo PC, antes da chegada. A subida chega repentinamente, com uma cortada à direita na entrada de Celorico, empinando-se desde o início. Mais uma vez o calor faz mossa, os números sobem, pendente e temperatura, inclementes. Paragem no início, para refrescar, paragem no Alto da primeira parte, para arrefecer o motor, paragem no penedo do Viso, para a fotografia e festejar, que a coisa estava feita.

Descida até Fafe e entrada na Pista de Cicloturismo, pela antiga via-férrea, últimos quilómetros sem preocupações com o trânsito.

Chegada pela 17H00, com 4H30 de folga relativamente ao tempo máximo previsto no novo regulamento. Sem furos, sem avarias, sem mazelas, sem incidentes (para além dos recontros com os cães), apenas calor, muito calor… e a satisfação pelo desafio ultrapassado.

A motorista já esperava, para as fotos finais. Arrumada a bicicleta no carro foi tempo de tirar a barriga de misérias: um tiramisu e uma cerveja preta.

Para quem gosta de números (retirados da análise IBPindex do ficheiro gpx gravado pelo ETrex 20):

  • 618km, com 13700m de acumulado;
  • 17.9km/h de velocidade média em andamento;
  • 55H20 no total, das quais 20H40 parado (7H50 na primeira noite e 8H00 na segunda).

Percurso muito bom, André / Valter / Vitor.

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