Esta coisa das lon­gas dis­tân­cias seria para mim...

José Ferreira
Randonneurs Portugal Nº20100006
Paris Brest Paris 2015

Algures em 2013…

Na sequência do Portugal na Vertical de 2013, onde uma dor no joelho quase me levou a desistir, fiquei na dúvida se esta coisa das longas distâncias seria para mim. No ano seguinte, primeiro o “Yo-yo 600” e depois os 1000 de “Por toda Galicia”, deixaram-me mais descansado. Faltava decidir se queria fazer tamanha despesa, quer em termos económicos quer em termos físicos.

Tomada a decisão houve que por pés (pedais) ao longo caminho de preparação. Rolar, adquirir equipamento, rolar, comprar dínamo e luz da frente, montar uma roda da frente nova, rolar, comprar, rolar, rolar (num total de cerca de 8.000km desde janeiro)…

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A caminho do Paris Brest Paris  2015

Em 2015 praticamente esqueci o BTT (e outras atividades), aproveitando o tempo disponível para fazer estrada e procurando brevets e desafios em diferentes locais e configurações de terreno: Vila Franca de Xira, Esposende, Salamanca, Corunha… Fiquei a conhecer-me melhor e aprendi novas
(velhas) coisas: talvez a mais importante é que as subidas são para descansar, mesmo (só desta forma conseguia gerir as fraquezas dos meus joelhos); a solidão não me assusta e consigo gerir melhor o esforço e o tempo se rolar sozinho.

A viagem em concreto começou em dezembro com o aluguer de casa nas imediações do Velódromo, negociar férias no meio de agosto e, em março, a reserva de hotel em Bordéus para a viagem. Em paralelo correram os primeiros brevets, a pre-inscrição e, finalmente, dois dias após o brevet dos 600, a inscrição e o pagamento da mesma. Estava tudo tratado. Só… faltava não descurar a preparação, rolar, rolar… Os últimos tempos foram de indecisões sobre a hora de saída qual o equipamento a levar.

A razão acabou por prevalecer, assumindo o tempo mais dilatado para disfrutar ao máximo. Quanto ao equipamento, decidi levar tudo e, na véspera, escolher em função das previsões meteorológicas. Nos últimos dias, já em França, os sacos foram feitos e refeitos várias vezes.

Cheguei a Paris ao fim da tarde de 12 de agosto, já se começavam a ver randonneurs. Dia 13 visita a Paris e 14 a Versalhes, cada vez mais randonneurs pelas imediações.

Em Paris

15 de agosto, finalmente no velódromo, para o bike check e levantamento da documentação, tantas biciletas diferentes, tanta gente eufórica… Foto de grupo ao fim da tarde com o grupo português.

16 de agosto, acordei cedo mas com ideia de dormir uma sesta depois do almoço (um “inconseguimento”). Em pulgas, saí de casa às 16h. Partida às 18H00, juntamente com mais outros 300 pulguentos do grupo “J”, incluindo o José Luís dos Riazores, o Tiago e o Rui (estes dois nem os vi).

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1…2…3… PBP

Saída relativamente calma, com despedida da família, do Pedro e da Filomena, por estradas rodeadas de espectadores que aplaudiam e gritavam palavras de encorajamento. Rapidamente deixei fugir os mais apressados tentanto prevenir alguma queda. Mais à frente consegui recuperar o José Luís para logo o perder de vez (até Carhaix, onde eu chegava e ele partia). Finalmente consegui apanhar um grupo pequeno mas animado, às 20h parei para pôr o colete e comer qualquer coisa e acabei por ficar sozinho no meio da multidão, vendo passar os sucessivos comboios, primeiro os “K” depois os “L” e por aí fora. Ao mesmo tempo, começar a ver algumas letras anteriores à minha deu-me ânimo para continuar e assumir que iria preferencialmente rolar ao meu ritmo.

O meu plano previa uma paragem para jantar, cerca das 8-9h, mas os tascos que foram aparecendo estavam pejados de ciclistas e eu fui avançando, comendo do que levava comigo. Do negrume da noite, uma voz chama-me em português: era o Valter que logo me fugiu novamente para nunca mais o encontrar.

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A noite foi-se desenrolando com mais algumas curtas paragens, tanto nos postos de acolhimento como ao longo da estrada junto dos espetadores que resolveram ficar acordados para apoiar os randonneurs. Alguns participantes parados na berma já a dormitar. A determinado momento também eu fui acometido pela sonolência: paragem, comprimido de cafeína e siga; a coisa não passa; nova paragem, aproveitada para verter águas; quando acabo reparo que, por cima da vedação, uma generosa macieira me oferecia os seus frutos; colhi um e meti-me novamente ao caminho; primeira dentada, que coisa mais verde, tirou-me logo o sono que não mais me incomodou por toda a viagem.

17 de agosto…

Viu chegar o primeiro posto de controlo, às 4h. Café na primeira tasca depois que se fez dia. De repente oiço o Miranda falar: também ele tinha escolhido aquele local para parar; eu continuei e ele ficou mais um bocado (só nos voltaríamos a encontrar no dia seguinte em Carhaix, já no regresso).

De quando em vez juntava-me a um grupo, e vice-versa, mas sempre por pouco tempo.

Princípio da tarde rolando sozinho, quase sem ver randonneurs, se não fosse o track do GPS ficaria a pensar que me tinha perdido. Almoço na esplanada dum restaurante, em Quédillac, seguindo os conselhos dos que diziam que se perdia tempo nos postos de acolhimento. Acabei por
desesperar, vendo passar grupos e grupos de participantes, à espera da comida. Tinha gasto menos tempo, e dinheiro, se tivesse parado no posto que surgiu logo de seguida o qual, não sendo controlo, estava praticamente despovoado (os mais rápidos estavam para a frente, sem parar, e os restantes vinham atrás de mim).

Continuação da viagem, alternando momentos de maior fraqueza com outros de euforia, gerindo sempre as paragens, fruindo as paisagens que agora começavam a ganhar interesse e o apoio popular. Chegada a Carhaix pouco antes das 8 da noite. Reencontro com o José Luis, sempre apoiado pela família que o acompanhou de posto em posto. Eu vou procurar cama e ele segue para Brest. No ginásio dizem-me para ir jantar descansado pois tinham muitos lugares disponíveis. Depois de jantar regressei, adquiri dois duches e dormida (estranharam muito que alguém perdesse tempo a tomar banho à noite e de manhã). As camas eram estruturas de campanha, uma armação de ferro com lona, incluindo um lençol. Os banhos incluíam sabão, toalha e luva descartáveis.

18 de agosto…

Noite razoavelmente bem passada, com alvorada às 4h30, a tempo das abluções matinais incluindo escanhoadela. Vestir, bem agasalhado e preparado para uma madrugada que se avizinhava fria e húmida, pequeno-almoço e saída, antes das 5h.

A etapa para Brest revelou-se tal como preanunciada: escura, húmida e, inicialmente, solitária. Depois foram surgindo as luzes vermelhas, espalhadas pela subida, umas em movimento e outras, deitadas na berma, anunciando vultos que não resistiram ao sono, cada vez mais, dormindo sobre
a erva, na valeta, por baixo das silvas, mais ou menos embrulhados em mantas de sobrevivência que refletiam as luzes de quem passava. Este troço, entre Carhaix e Brest, foi o que mais me impressionou pela quantidade de participantes tombados nos sítios mais estranhos, começando a revelar o
estado de exaustão que os ia atingindo (e eu, repousado, bem contente pela decisão de pernoitar antes de abordar a subida). Chegada ao alto com o alvorecer e subsequente descida, passagem por Sizun, cheia de ciclistas que retemperavam as forças nos crepes anunciados por toda a parte.

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Pouco depois vejo o Rui e o Tiago, tendo seguido mais ou menos juntos até Brest (eles que já tinham parado em Sizun, deixariam o posto de controlo logo depois de carimbar o cartão, pelo que só os voltei a ver em Paris). Chegada a Brest no meio do nevoeiro que escondia a base da ponte da
autoestrada deixando fotografar apenas o topo das torres que sustentavam os cabos. No posto de controlo, encontro com o José Almeida , José Inácio e Paulo Gomes. Pequeno almoço em conjunto e logo os deixei para trás. Paragem em Sizun, agora mais calma, para comer um crepe e beber uma sidra (seria vergonhoso vir à Bretanha e não o fazer). Nova subida até ao cruzamento de acesso à Roc’h Trevezel e fotografia da praxe, com tempo para aceitar uma bolacha oferecida pelos espetadores. A meio da descida encontro o Pedro que já nos ia apanhando, apesar de ter saído 11h depois.

Pausa para almoço na nova passagem por Carhaix, onde encontro o Miranda que agora sim vai aproveitar para também ele refrescar o corpo (só nos voltaríamos a encontrar na última etapa, entre Dreux e Paris).

Na chegada a Loudéac encontro o Carlos que já se ia. Mais à frente, a caminho de Quedillac, passo por ele, ambos sozinhos e grito-lhe: viva Portugal. Nem sei se ele deu por isso. Aproveito a paragem para comer uma sopa,  arroz doce (esta combinação acabou por ser a base da minha alimentação em muitosdos postos de acolhimento)  e encher o camelbak. O início da noite acompanhou-me até Tinténiac, onde procurei um local para dormir. Principesco: um quarto com quatro verdadeiras camas (local a privilegiar em futura participação). Reservada a dormida dei início à rotina planeada:
jantar, banho e cama. Enquanto jantava vejo passar o Carlos, completamente zonzo, com a manta de sobrevivência debaixo do braço. Acenei-lhe mas ele, certamente já a dormir em pé, apenas tinha olhos para algum pedaço de chão vago (outro que também não voltei a ver).

19 de agosto…

Acordar às 5h30 e, depois de lavadinho, barbeado e cheirosinho, dirijo-me ao local de armazenamento das bikes….espanto! Com tanto espaço tinham que estacionar uma bicicleta em frente à minha. Começo a deslocá-la quando reparo numa bandeira portuguesa cosida sobre a bolsa de trás: o Miranda tinha chegado durante a noite e este era o sinal para eu perceber que ele também tinha resolvido assumir um descanso em condições, não repetindo o erro do primeiro dia.

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Visita ao velocista para tentar resolver o posicionamento da bolsa da frente, que teimava em obstruir o feixe de luz frontal. Depois do pequeno-almoço, bem agasalhado, pedais ao caminho. Até Fougéres mantive um ritmo fantástico que me fez acreditar na possibilidade de antecipar a chegada para o fim do dia. Depois vieram as etapas das bossas e o calor, o ritmo caíu tornando penosa a chegada, primeiro a Villaines e depois a Mortagne. Em Villaines-la-Juhel, a barulheira do speaker e o número de apoiantes fazia lembrar uma etapa do Tour. Na área de refeições, outra voz que me chama,
desta vez em galego. Era o José António Ferreiro, companheiro Riazor da Flécha Iberica e de outros brevets.

Julgo que a etapa que me custou mais foi a que ligou Villaines a Mortagne-au-Perche. Fiquei arrasado, ansioso por chegar a uma pastelaria, no mínimo a uma tasca, e nada: um deserto. Acabou por passar mas desisti da ideia de chegar a Paris neste dia. Depois de Mortagne o sol começou a
esconder-se, o terreno acalmou e ficou um fim de tarde fabuloso, talvez o pedaço mais aprazível de toda a randonnée. Voltei a acreditar numa chegada até à meia-noite (limite que tinha imposto a mim mesmo).

Chegada a Dreux num grupo cheio de genica, já noite, curva e contracurva, de repente ouço um baque. O meu impermeável de goretex tinha-se soltado dos elásticos e caído ao chão. Acabei a etapa novamente sozinho, cerca das 22h30. Faltavam apenas 64km mas já não conseguiria chegar antes da hora em que os encantamentos se desfazem.

Rotina habitual: procurar dormida (gratuita neste posto), jantar e banho. O Miranda chegou, já de madrugada.

20 de agosto…

Acordar às 5h00. A desorganização da zona dos banhos e sanitários, bem como a grande afluência à restauração, acabaram por me atrasar. Lá fora começava a chover (afinal iria ser um PBP completo). Após troca de mensagens o Miranda despachou-se primeiro e foi saindo ao seu ritmo.

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88 horas depois… Paris

Chegado ao parque das bikes começo a preparar tudo para sair. De repente reparo que me tinha esquecido do saco com as roupas da véspera e bolsa dehigiene. Toca a voltar à zona de restauração (que uns calções Assos não são coisa de se abandonar de ânimo leve). O atraso sobre o plano era já quase de uma hora. Saída a bom ritmo, debaixo de chuva, procurando alcançar o Miranda. Os outros participantes, mais temerosos da chuva ou mais cansados, iam-se deixando ultrapassar. Na passagem por um alpendre resolvo parar para enviar uma SMS e avisar a família e o Miranda de que estava cerca de uma hora atrasado relativamente à minha previsão: o telemóvel informa-me que não tinha rede, pelo que a mensagem seria enviada logo que possível (chegou já depois de termos terminado e após desligar e voltar a ligar umas poucas de vezes; julgo que não deve ter gostado muito da humidade). Rodas ao caminho até que, mais à frente, alcancei o Miranda continuando os dois juntos, num ritmo mais comedido, até ao onde chegámos lado a lado, 88h depois da partida.

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As nossas esponjas, que nos esperavam desde as 9h, nem nos viram chegar. Só nos encontraram já debaixo de abrigo, alertadas pela Filomena que controlava em tempo real as nossas “pointages”.
Foto de finalista e já só faltava aguardar que os restantes parceiros de aventura chegassem.

Neste PBP…

  • O aspeto mais importante que tem de ser garantido para se chegar
    rolar sempre a um ritmo certo e gerir bem os tempos perdidos para conseguir tempo para repousar durante a noite.

  • Um aspeto que tem de ser evitado
    Não seguir o seu próprio ritmo.

  • Próxima participação
    Pretendo sair nas 84h mas será apenas para experimentar a diferença. Se fosse a primeira vez sairia novamente nas 90h.

  • Uma dica para quem queira ir pela 1a vez ao PBP
    Fazer uma boa preparação, levar material resistente e fiável e investir num bom sistema de iluminação frontal.